Os Semitas e o Tabu do Corpo - Parte 1
BREVE HISTÓRIA DOS POVOS SEMITAS
A história do povo semita (hebreus) se confunde com a religião por que praticamente tudo o que se sabe sobre suas origens está baseado nos livros de códigos sacerdotais e históricos.
Existem três hipóteses para a origem dos povos semitas:
a) Esses povos teriam se originado na Etiópia e depois se estabelecido na Arábia e no Oriente Médio;
b) Os Semitas seriam originários do sul da Mesopotâmia;
c) Esses povos teriam surgido na Arábia e a partir de 3.500 a.C. teriam migrado para outras regiões em busca de terras férteis. Essa hipótese é a mais convincente.
Entre os antigos povos semitas estão os: Fenícios, Hebreus, Amoritas, Acadianos, Assírios, Cananeus, Sírios, Caldeus, Arameus, Árabes e Hicsos.
Curiosamente, esses povos se estabeleceram para “além do Eufrates”, após o dilúvio.
As línguas semíticas mais comuns faladas hoje são: o árabe, o maltês, o hebraico, o amárico, o aramaico e o tigrínia. Para nossa pesquisa, fizemos uso da língua hebraica, especificamente.
CONCEPÇÃO DA VIDA - ALMA E DO CORPO PARA OS SEMITAS HEBREUS
Alma (conjuntiva)
Nosso ponto de partida foi a Bíblia (Torah). Ela revela que a concepção de uma alma imortal era inconcebível aos judeus primitivos. Mesmo posteriormente, na era cristã, não havia outra concepção em voga.
Faremos uso do contexto de Daniel, cap. XII, 2 (escrito em 164 a.C., na época da perseguição de Antíoco IV, rei Assírio). Este texto narra acerca da ressurreição do corpo.
[...]“Muitos dos que dormem no pó (עפר מישני – yeshenim abáq) da terra
(עולם) ressuscitarão, uns para a vida eterna (חליle chii - olam) e outros – para a vergonha do desprezo eterno”.
(Bible King James, R.F. & Hibrish)
.ורבים מישני אדמת עפר יקיצו אלה לחיי עולם ואלה לחרפות לדראון עולם
Os hebreus foram atravessados por várias culturas, principalmente por se tratar de um povo nômade-pastoril.
À partir desses atravessamentos, eles construíram seu próprio conceito de alma, porém, de forma diferenciada, em comparação os demais povos semitas.
Este conceito sofreu grande modificação na idade média (mística judaica). A tradição Judaica (Torah), diz:
"E o Todo Poderoso formou o homem do pó da terra e
soprou em suas narinas a alma da vida".
(Bereshit, 2:7)
Na idade média a ideia da concepção da vida e da morte recebem nova configuração. Ao citar o Bereshit, no Zôhar (escrito no séc. XII por Móses de Leòn, e explicado por Moshe Ben Shem-Tov) o erudito esclarece que em relação à alma, "aquele que sopra, sopra de dentro de si mesmo[...]" - indicando que essa alma, é na verdade parte da essência de D'us.
Como sua essência é completamente espiritual e não-física é impossível que a alma possa morrer. Esta é a ideia que o Rei Salomão queria transmitir quando escreveu:
"O pó retornará ao solo (adamah) como antes, e o espírito
retornará a D'us que o concedeu."
(Cohêlet –Pregador: 12:7).
Este seria um exemplo do uso do substantivo "harukha" (Hb.) = Espírito, sopro comparável ao substantivo “pneuma” (Gr.) = vento, sopro, espírito.
PARA OS HEBREUS É O CORPO O MESMO QUE CARNE?
No semitismo, a consonância da carne não é idêntica ao corpo humano. O idioma hebraico não tem palavra que signifique “corpo” no sentido latino (corpus [et.] enquanto parte física dos animais).
Apesar de "gewiya" ser traduzido como corpo no sentido carnal em textos de Gn. 47.18; Ne. 9.37; Ez. 1.11,23; Dn. 10.6; este substantivo significa em sua raiz filológica “carne”, que, na língua hebréia, se refere a um corpo sem vida (alma).
Os termos com raízes hebraicas referentes a um corpo sem vida são: “cadáver” ou “carcaça”: "nebelâ" - נבלה (Raiz nabal - נבל), que significa “afundar” ou “deixar cair”.
Conferimos esses termos em: Dt. 21.23;28.26; Js. 8.29; 1Rs. 13.22,24,25,28-30; 2Rs. 9.37; Jr. 26.23;36.30). Encontramos ainda a palavra "peger" que deriva de uma raiz que significa “estar exausto”, “desmaiar”.
Pode ser compreendida ainda como: cadáver exposto, sem direito a sepultura (maldição) lidos em Lv. 26.30; Nm. 14:29,32,33; Is. 14:19; 34.3; 66.24; Jr. 31:40; 33.5; 41.9; Ez. 6.5; Am 8.3; Na. 3.3) e "gewiya", que se traduz por "cadáver animal" em Jz. 14.9,9; 1Sm. 31.10,12; Sl 110.6 e Na. 3.3) e, finalmente, "gûpâ", que significa, recentemente morto, tal como conferimos em 1 Cr. 10.12.
Todos esses termos se referem a um estado corpóreo mortificado, contudo, se diferenciam em gênero, raça e juízo.
Alma e corpo, mesmo em termos físicos, aparecem nas escrituras diferenciados e,
após a morte, retornam para a mesma “essência”.
Para os hebreus mais tardios que se organizaram após a elaboração dos códigos sacerdotais, a interpretação da vida estava relacionada a santidade para com D’us, que, com as "mãos e hálito" - criou toda alma vivente, isto é: "Havah" e, com a morte, o “todo” (pó + há’vah) da criação os retorna à sua fonte primordial.
Os que não se encontram em santidade são direcionados para uma espécie de purgamento e os "bastardos" não tem direito à sepultura e são lançados no "geena", que segundo a tradição, é uma espécie de poço (Val do Hinon), que foi lugar de sacrifícios humanos na antiguidade utilizaram durante séculos para eliminar cadáveres.
Local Circulado é a localização do Vale do Hinon em Israel |
O SIGNIFICADO DA MORTE COMO DESMEMBRAMENTO DA ENTIDADE
Nosso espaço não nos permite uma análise detalhada acerca dos problemas relativos ao sentido da vida e à concepção da imortalidade, tendo em conta que esta deve ser definida no mundo antigo (semítico) como o prolongamento da vida, por período indefinido, mas não necessariamente eterno.
Como já mencionamos, eternidade é, na realidade, uma noção abstrata e tardia a ser concebida pelos hebreus. Os semitas, de um modo em geral, tinham uma concepção ctónica ou telúrica referente à terra e entidades aprisionadas a esta realidade.
A crença primordial em relação à morte era de que homens e outros seres vivos -
criados a partir da argila - regressariam a essa matéria primitiva após a morte. Para os hebreus a vida implicava liberdade e movimento e era simbolizada pela luz.
Já a morte, ao contrário, era o encontro desta entidade com o mundo inferior sem as
luzes e sem movimento. Nisto, a concepção hebraica sobre a morte, deve ser compreendida como um estado que se opõe à vida e, que não é em caso algum, preferível.
Apesar desse valor devido à vida, os semitas não criaram uma oferta de vida eterna para além da morte.
No hebraísmo primitivo preocupava-se em saber como manter a ordem em face do caos (conflitos tribais); na moral e nos valores de construir um sistema de crenças sobre a existência de um julgamento dos mortos ou de uma compensação ou punição depois da morte (tais como os egípcios).
Contudo, nos escritos sagrados, principalmente nos rabínicos, a morte passa a ser de interesse para compreensão e explicação para o sentido da existência (mesmo que à posteriori).
DIVERSAS FASE DO CONCEITO DE MORTE NO HEBRAISMO
Mística Judaica – Início após Exílio Babilônico
Para o judaímo tradicional, na morte, a alma e o corpo, que formavam uma entidade (vida = Ha’ Adamah) se separam.
O corpo (mett) é enterrado e volta à matéria perdendo toda sua conexão com a vitalidade (guff - corporalidade).
Já a alma (há’vah) se transfere deste mundo para o próximo, um mundo totalmente espiritual.
Essa transferência se dá por etapas: enquanto o corpo passa por um processo lento de decomposição essencial para a separação gradual (deixa de ser conjuntiva) entre corpo e alma, a alma judaica, passa por vários estágios se desligando gradualmente deste mundo:
a) Primeiro: a morte ( מת = mett);b) O enterro (קבר = qever);c) Três dias após a morte - (גּוּף – guff – inteiro);d) Uma semana após a morte - (גופה מרקיבה – gufah mareqiach);
e) 30 dias após a morte - (גופה - gufah - 3 meses após a morte.;
f) 11 meses após a morte - (פֶּגֶּר – peger) e finalmente um ano após a morte,
.haseridim - השרידים
Segundo Maimônides (Ravi Rambam – séc. XII – em 13 princípios da Fé), as pessoas boas recebem uma recompensa e os maus são punidos.
Contudo, esta ideia surgiu na idade média, após o judaísmo ser assimilado a muitas culturas e ter sido atravessado pelo pensamento greco-romano.
Segundo o Rambam, a alma precisa passar por uma série de purificações para poder entrar no “Gan Éden” (conhecido como paraíso).
Muitos chamam esta fase de inferno ou purgatório, mas o judaísmo acredita que o inferno (Sheol) não é uma punição. Mas, um processo de refinamento pelo qual a alma precisa passar para se purificar dos pecados cometidos e elevar-se nos diferentes reinos espirituais.
Só então a alma vai para o Gan Éden, onde estuda os segredos mais profundos da Toráh e é envolvida pela presença Divina (Olam H’bah).
O Sheol (שאול) conota um lugar onde se acreditava que aqueles que morreram estavam reunidos. Para os hebreus, ele se localiza debaixo da terra (Is.11: 11; 9; Ez 22:14; Sl 31; 13; Eclesiástico II 6; Enoch, 18: 6).
Orar em torno do Sheol não é esperado (II Sam.13:23; 23; Jó 7: 9, 10; 10:21; 14: 7 e Eclesiástico, 38:21). Ele é descrito como a casa eterna do homem (Ecl. 12:5).
Para os judeus o homem é considerado "pó" (Sl. 30: 10). Logo, no Shemoneh Esreh - também conhecido como "Amidá - As 18 Bençãos" (especificamente na Bênção número II), os mortos são descritos como "dormentes no pó".
Em Eclesiastes (480 a. C e 180 a.C.), escrito após o Cativeiro Babilônico), temos justificativas das possíveis assimilações dessa tradição com a tradição mesopotâmica zoroastrista.
Para o judaísmo tradicional (contemporâneo) é possível que um judeu ortodoxo acredite que as almas dos justos mortos vão para um lugar semelhante ao céu cristão, ou mesmo que, simplesmente esperem até a vinda do Messias, quando eles serão ressuscitados. As crenças não homogêneas.
A CREMAÇÃO
A cremação não é autorizada pelas escrituras hebréias. Na tradição, chega a ser proibida, porque a morte, para os hebreus envolve mais que apenas um corpo.
Trata-se também da alma (até então gradual). Com a morte, a alma passa por uma dolorosa separação do corpo que até então a tinha abrigado.
Este processo de separação ocorre conforme vai ocorrendo a decomposição do corpo.
Durante o tempo em que está enterrado, o corpo desintegra-se lentamente. Acredita-se, que este método, é possível oferecer um conforto à alma que está se liberando do corpo. Esta decomposição é fundamental para esse processo.
Por conta dessa crença, a Lei Judaica proíbe embalsamar ou enterrar em um mausoléu (sarcófago). Para eles esse processo retardaria a decomposição que é necessária para a "libertação"..
A Tradição ensina que os judeus devem ser sepultados em um caixão de madeira para se deteriorar mais rapidamente. Da mesma forma, a Lei Judaica decreta que o sepultamento seja feito o mais rápido possível depois da morte.
Em Israel, os funerais frequentemente ocorrem no mesmo dia da morte. Tudo isso é feito para o benefício da alma.
Uma razão pela qual o Judaísmo proíbe a cremação é que a alma sofreria um grande choque, devido à súbita separação artificial do corpo.
Como diz o Talmud: "O enterro não é para o bem dos vivos, mas sim para os mortos". (Sanhedrin, 47ª – Lei Suprema).
Vide: Beit Yitschak, Yoreh Deah II, 195 (baseado no Talmud — Temurah 34a).Achiezer III, 72:4. (Baseado em Devarim 21:23 e Maimônides — Leis do Sanhedrin 15:8) |
A RESSURREIÇÃO
A crença sobre a ressurreição dos mortos é uma crença fundamental do judaísmo tradicional, tanto primitivo quanto para o contemporâneo.
Essa crença que distinguiu os Fariseus (antepassado intelectual do judaísmo rabínico) dos Saduceus (tipos políticos e céticos).
Os Saduceus rejeitavam o conceito da Ressurreição porquê não é explicitamente mencionado na Toráh. Já os Fariseus encontraram o conceito implícito em certos versículos (JOSEFO, 1990).
A crença na Ressurreição dos mortos é um dos “XIII Princípios de Fé” de Rambam (Maimônides). Para os crédulos, a ressurreição dos mortos ocorrerá na era messiânica, um tempo referido em hebraico como o “Olam Ha-Ba” - i. é., o Mundo Vindouro, seria o Paraíso estabelecido na Terra).
A tradição judaica registra que com o enterro, um único osso na parte posterior do pescoço (hioide) nunca se decompõe.
Cemitério com 46 túmulos de judeus da Idade Média é descoberto na França |
Segundo a Tradição Judaica, seria a partir deste osso — chamado osso luz - que o corpo humano será reconstruído na futura “Era messiânica".
Com a cremação, esse osso pode ser destruído, logo, o processo de ressurreição prejudicado. Para eles, na verdade, alguém que escolhe a cremação age como se não acreditasse na ressurreição.
Esse foi nosso primeiro artigo sobre "Os Semitas e o Tabu do Corpo". Não deixe de nos seguir para ter acesso à parte II.
Esse trabalho de Antropologia Cultural e Religiosa espera agregar a seus conhecimentos, novas informações e cultura.
Voltamos logo com a parte II.
Com vocês, sempre.
Christianne Sturzeneker
Comentários
Postar um comentário
Oi, este espaço é pra quem gosta de pensar, do existir e do abrir-se ao saber. Se você é assim, seja bem vindo(a)!