Os Semitas e o Tabu do Corpo - Parte 2


Adam Kadmom - 
[llustration: The Creation of Man by E.M. Lilien]

No artigo anterior, introduzimos alguns conceitos sobre o lugar do corpo e o caminho a alma após a morte na concepção hebraica. 

Procuramos de forma breve estruturar as fases de decomposição do corpo após a crença semítica ser continuada pelos hebreus acerca da transmigração das almas.

Nesse artigo, vamos debruçar mais um pouco sobre os aspectos etimológicos do corpo e da alma para os semitas. Vale dizer que as palavras são originárias do alfabeto semítico acadiano. Logo, toda e qualquer tradução para a língua latina não é 100% fidedigna na interpretação. 

Neste Vídeo de autoria do Canal de Linguística do YouTube, você pode conferir sobre os aspectos filológicos do idioma. Mas, continuemos nosso caminho.

ETIMOLOGIA CORPO E ALMA NO CONTEXTO SEMITA

O estudo das palavras Corpo e Alma em suas múltiplas significâncias nos obriga a reduzir em quatro, as palavras principais relacionadas com a natureza humana: guff carne; rûah = espirito; nephesh = alma/vida e leb = coração-intelecto. 


Essas palavras revelam que o ser humano é uma criatura multifacetada. Em alguns aspectos o ser humano é semelhante a outras criaturas, mas em outros, é totalmente distinto. Cada um desses quatro termos tem várias nuances e sentido. Cada um tem implicações físicas e psíquicas no hebraísmo.


No Antigo Testamento (AT), conhecia-se o coração (leb) como órgão físico, mas não sua função essencial (lebab) de fazer circular o sangue. O contexto em que cada termo é usado tem de ser considerado com cuidado. 


Cada um deles pode ser usado em algum sentido quase como sinônimo dos outros mas, em outros momentos, pode representar a pessoa toda.


Eichrodt (2004) diz que o pensamento hebraico não estava interessado em uma análise teórica de fenômenos psíquicos. Para este autor, não encontramos nas Escrituras (AT) nenhum dualismo rígido que sente que carne e espirito, corpo e alma, são opostos irreconciliáveis. 


As formas linguísticas de nephesh e rûah - como dois componentes da natureza espiritual do ser humano - ainda são de difícil compreensão, principalmente no contexto ocidental. 


Momento que a alma inicia a Transmigração - Revista Arco, UFSM, 2019. 

Contudo, esses conectivos são excelentes descrições das qualidades diversas dos eventos psíquicos. Mas, de nenhum modo devem ser considerados enquanto termos exatos para tradução. 


Geralmente, são termos adequados para inculcar capacidades ou áreas específicas da psiquê. Pelo contrário, eles representam sempre toda a vida da pessoa de determinado ponto de vista.


Vou descrever abaixo um mini glossário com algumas palavras hebraicas e suas significâncias em relação ao corpo e à alma.


  • Alma (sopro – vida / Anima [gr.]) - nepesh – נפש - pode significar “corpo sem vida” (quando o cadáver se desprega da vida = resta mett).

  • Carne (alimento) = basar – (porco) בשר, bakar (gado) - בקר (comestível – nunca relacionado ao humano a diferença está no Kosher = autorizado, santificado).

  • Carne (analogia ser humano) = גוף האדם - Guff (há-adam – corpo humano/ vivo; guffar = corpo morto (tanto homem como animal).
  • Cadáver (restos mortais) = השרידים – hasseridim.
  • Cadáver (Fantasma) = גוויה – gewiyah (percepção do morto).
  • Coração = Leb (v') = לב (ógão) = lebab לבב - (vitalidade).
  • Corporal = גפני (Gufaní) – corpo quente (vitalidade).
  • Corpo frio = גופר - Gufár – raiz morto.
  • Existir (viver) = חי- Khay = terreno.
  • Morto (falecido) = מט – mett.
  • Sarcófago = סרקופג - sarqofag.
  • Sepultura = קבר (qéber) – local de colocar corpo frio.
  • Sepultura (cova/buraco) בור  = bór. 
  • Ser vivente (homem) = nephesh há’yah - נפש חיה (espírito e alma).
Jewish Museum - Marc Chagall - French, b. Belorussia, 1887-1985


CONCEITO DE CORPO E ALMA NA KABALAH


Na Idade Média o conceito de corpo e alma para os judeus passam por uma série de adaptações. Nessa época os hebreus já eram denominados judeus e haviam sido espalhados pela Europa e Mundo em decorrência da Queda de Jerusalem no ano  72 d.C. 


Com a destruição do Templo de Jerusalém, ficaram impedidos de cultuar ao seu D'us e com isso, algumas práticas místicas foram incorporadas ao culto judaico. 


Um conjunto de ensinamentos esotéricos que pretendia explicar a relação entre o D'us eterno e imutável – o misterioso Ein Sof (Inexorável) – e o universo finito e mortal (criado por D'us)


O termo Kabalah (קְנוּנִיָה) significa literalmente "recebido" e pode ser vista como o fundamento das interpretações místicas no âmbito do judaísmo.


A Kabalah enquanto mística judaica, ensina que cada pessoa, independentemente de sua natureza ou comportamento possui duas almas: uma divina e uma natural.  Segundo ela, a alma divina procede da humana e diferenciaria dos demais animais.


Essas são as almas básicas do ser humano; e não devem ser confundidas com a alma adicional que um judeu recebe durante o Shabat ou com os cinco níveis da alma, conhecidos como: Nefesh - Ruach (vida e morte); Neshamá, Chaya e Yechidá (esses três tipos apresentam-se apenas após a morte do corpo no pós-vida, i.é. - Olam Há’bah).


Essa perspectiva integral do ser humano tem implicações para muitas áreas da vida. Por exemplo, se o corpo (carne) tem potencial psíquico, assim como físicos, ele não é um mero objeto que possuímos fora do nosso verdadeiro ser. Ele é uma parte vital do nosso ser. 


Não pode ser desprezado ou pouco considerado. Ele faz parte da imagem de D’us. Com isso, é possível compreender a crença da Redenção que neste contexto, inclui tanto nos aspectos físicos como os psíquicos. Para o AT, a vida após a morte incluirá corpo e alma dos ressurretos (Olam Há-bah)¹.


¹ - Esse tema das duas almas é discutido na obra cabalística: Etz Chayim (Árvore da Vida) - Rabi Chayim Vital. Ele se baseou nos ensinamentos do Rabi Yitzhak Luria - o Arizal, o maior cabalista de todos os tempos. É encontrado ainda no livro Tanya do Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Alter Rebe.

- Vide: Scholem, G. A Cabalah e a Mística Judaica. Publicações Dom Quixote. Rio de Janeiro, 1984.


Capa de Kabalah Medieval - séc.XIII 



COMPARAÇÃO DO CONCEITO DE CORPO NOS IDIOMAS HEBRAICO E
GREGO


Como os hebreus foram bastante influenciados pelos Gregos, gostaríamos de traçar um breve paralelo entre ambas as culturas sobre o conceito de Corpo. 


Visto anteriormente, o conceito de corpo é multifacetado no hebraísmo, in regula, aponta grande dificuldade de contextualização gramatical e sintética.


Preciso dizer que a conotação estética não aparece no hebraísmo primitivo, nem contemporâneo tal como aparece nos ensaios, escritos e artes gregas. Para os hebreus, se tratando de uma similaridade com os gregos, o mais próximo que teríamos seria o uso do termo no contexto existencial filosófico e religioso.


Já dissemos que na etimologia grega, o corpo ganha conotação estética, além de seus significantes tradicionais. De acordo com Enciclopédia Virual Glosbe e Dicionário Grego de Taylor (1980), o substantivo masculino σώμα (Soma - Corpo), conota: estrutura física (anatômica) de um ser humano ou animal (vivo ou morto). Ambos estão de acordo na sintaxe.


Os autores Bezas & Werneck, em seu polêmico artigo “Idioma grego análise da etimologia anatomocardiológica: passado e presente”, apud, Benedict (9:27) declaram:


 “O termo soma, por exemplo, que na Grécia moderna sempre
significou corpo, no grego antigo de Homero não tinha esse
significado, aliás, não tinha significado algum no homem vivo. A
palavra soma só passava a existir após a morte, ou seja, o
significado mais próximo, transferido para os dias de hoje, seria
“cadáver”.

 

Na estética Aristoteliana, o corpo consistia a investigação sobre as coisas que nos afetam a partir da sensibilidade, de nossas paixões e de tudo que é artístico.


Escultura Helenístia - AgesandroAtenodoro e PolidoroGrupo de Laocoonteséculo I a.C.


Para Reale (1999): [...] “a linguagem é muito mais que um instrumento com o qual o pensamento exprime a coisa, à medida que é a própria linguagem que traz à luz a coisa e permite ao pensamento pensá-la. Uma língua não é nunca passível de tradução perfeita em outra porque para alcançar a compreensão e a expressão perfeita das mensagens comunicadas com aquela linguagem, seria preciso ser diretamente participante do mundo que se exprime naquela linguagem". 


A arte é a única que exprime a linguagem universal (acréscimos nosso).


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Muitas pesquisas tratam da origem verdadeira das palavras (etimologia), porém, a maioria não vai muito além do nascimento do termo. 


Nessa argumentação não podemos chegar a conclusões absolutas, pois  nessa área específica do significado do corpo e alma nos contextos hebraico, ou seja, reduzí-la para o contexto ocidental -  além dos textos religiosos. E, em relação ao idioma grego, verifica-se grande divergência entre o significado etimológico dos radicais do Idioma Grego Antigo. 


Sugere-se para fins práticos, considerar os preceitos de analogia e da linguística, especialmente para idiomas tão complexos, como o grego e hebraico antigos, tal qual apresentamos no vídeo introdutório.


Finalmente este presente artigo não se esgota neste tema, mas abre a discussão sobre o lugar e significante do corpo e da alma para alem do pensamento oriental semita e ocidental grego. 


Diante disso, se percebe que este artigo está parcialmente em consonância com a pesquisa anterior, contudo revelamos algumas diferenças entre termos basar (בשר) e baqar (בקר) em relação sua etimologia. 


Vale lembrar que o primeiro vocábulo referente a carne consumível (incluindo a sacrificial), e ainda, a algum aspecto morfológico animal (humano ou não); e a segunda, se refere precisamente ao alimento e morfologia do gado, nunca sendo empregada ao sentido do corpo humano em relação a sua existência e corporalidade. 


Por esta razão, o uso do substantivo basar, não seria adequado, ao conceito de carne human(corpo vivo ou morto) e, nem mesmo atribuído ao termo grego σώμα (soma) pois segundo a concepção hebraica, corpo e alma vivem como se “conglomerados”, em unidade e sincronicidade.


Desmembrando-se apenas após a morte, para ambos voltarem a sua essência primordial (D’us). Enquanto o termo grego, apesar de se referir a um contesto de existência (vida), não se refere com precisão ao contexto hebraico de entidade uma.


Mesmo depois da morte física, o conceito parece se propagar, e se dá em muitas etapas, contudo, sem real distinção de dupla natureza, diferente do contexto evidente nos textos gregos, em especial, em Homero.


                                                          Christianne Sturzeneker - Copyright©2005-2024

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REFERÊNCIAS

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