A Casa como Cárcere e como Caminho: A Neurose Feminina em Três Perspectivas

Por Christianne Sturzeneker*



Este artigo explora a neurose feminina, uma condição frequentemente resultante da sobrecarga das mulheres com múltiplos papéis sociais e expectativas externas. Analisamos a neurose sob três perspectivas principais: psicanalítica (Sigmund Freud), analítica (Carl Gustav Jung), e existencial (Martin Heidegger), além de considerar a contribuição da psicanalista Clarissa Pinkola Estés. 

A partir dessas abordagens, discutimos como a neurose se manifesta em diferentes contextos e oferecemos caminhos terapêuticos para a cura, com foco na reconciliação das mulheres com suas identidades autênticas.

1. Introdução

A neurose feminina é um fenômeno complexo e multifacetado, resultante das tensões entre as expectativas sociais e as demandas internas das mulheres. 

Desde os papéis tradicionais no lar até as exigências no mercado de trabalho, as mulheres são frequentemente confrontadas com um dilema entre o que a sociedade espera delas e o que elas realmente desejam ou precisam. 

Freud, Jung, Heidegger e Clarissa Pinkola Estés, cada um à sua maneira, nos oferecem uma compreensão profunda das causas e soluções para essas questões. 

Este artigo propõe uma análise integradora das teorias dessas figuras, com a intenção de oferecer uma compreensão mais ampla da neurose feminina e de sugerir caminhos para a cura.


2. Reconhecimento e Aceitação do Conflito Interno: Freud e o Inconsciente

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, foi um dos primeiros a sugerir que as neuroses são resultado de conflitos não resolvidos no inconsciente. 

Para Freud, o sofrimento psíquico das mulheres é frequentemente ligado à repressão de seus desejos e emoções, em parte devido às normas sociais que as forçam a adotar certos papéis. O inconsciente, ao reprimir esses sentimentos, provoca sintomas neuróticos, como ansiedade, depressão e distúrbios físicos.

Estudo de Caso 1: Marta e a Neurose da Dona de Casa (Nome fictício)


Marta, uma mulher de 35 anos, casada e mãe de dois filhos, experimenta sintomas de ansiedade e sensação constante de frustração. 

A princípio, ela pensava que sua infelicidade estava relacionada à sobrecarga de responsabilidades dentro de casa. No entanto, após análise, percebe-se que a raiz de sua neurose está na repressão de seus próprios desejos e expectativas. 

Marta vive em um ambiente familiar tradicional, onde os papéis de dona de casa e mãe estão totalmente atribuídos a ela, sem que haja espaço para a realização pessoal fora desses limites.

De acordo com Freud, a repressão das vontades e a incapacidade de se expressar emocionalmente causam distúrbios psicológicos, sendo a busca de um equilíbrio entre os desejos pessoais e os papéis sociais um passo crucial para a cura. A terapia de Marta seguiu no sentido de explorar os conflitos internos, permitindo-lhe tomar consciência de suas próprias necessidades e desejos reprimidos.

Orientação psicológica:

A psicanálise freudiana propõe a exploração desses conflitos por meio de técnicas como a livre associação, a interpretação dos sonhos e a análise dos mecanismos de defesa. A terapia psicanalítica visa ajudar as mulheres a reconhecerem seus desejos reprimidos e a processarem os traumas que geraram a neurose.


3. Exploração da Sombra e a Integração Psíquica: A Perspectiva Junguiana

Carl Gustav Jung, discípulo de Freud, expandiu a psicanálise com a introdução do conceito de sombra, que se refere aos aspectos reprimidos da psique. 

Para Jung, a neurose ocorre quando a mulher é forçada a suprimir aspectos essenciais de sua personalidade, como sua criatividade, sua sexualidade ou seu desejo de poder. 

A integração da sombra é um passo fundamental na cura da neurose feminina, pois permite que a mulher se reconcilie com as partes negadas de si mesma.

Estudo de Caso 2: Camila e a Crise da Mulher Moderna (Nome fictício)


Camila, de 28 anos, é uma profissional bem-sucedida que trabalha em uma grande empresa. No entanto, embora tenha uma vida exterior bem estruturada, Camila sente um vazio existencial. 

Ela sempre foi incentivada a seguir o caminho da carreira e a se provar no mundo profissional, mas negligenciou sua vida emocional e afetiva. 

Em sessões de terapia junguiana, Camila começou a perceber que seu comportamento era uma expressão de sua sombra, ou seja, das partes de si mesma que ela negligenciava ou rejeitava.

A análise de Jung enfatiza que, para a mulher alcançar a totalidade psíquica, ela deve integrar essas partes sombrias e reconectar-se com seu eu autêntico. 

No caso de Camila, isso significou aprender a ouvir suas próprias necessidades emocionais e a encontrar um equilíbrio entre sua vida profissional e pessoal.

Orientação psicológica:

A terapia junguiana incentiva a individuação, um processo pelo qual a mulher integra aspectos conflitantes da psique, incluindo a sombra. 

Uma das principais abordagens terapêuticas seria a exploração de arquétipos, especialmente o da mulher selvagem, conceito explorado por Clarissa Pinkola Estés em sua obra Mulheres que Correm com os Lobos

A reconexão com a mulher selvagem pode permitir que a mulher acesse uma identidade autêntica e empoderada.


4. A Mulher Selvagem e o Resgate do Poder Pessoal: Clarissa Pinkola Estés


Clarissa Pinkola Estés, psicóloga e psicanalista, traz uma contribuição crucial para a compreensão da neurose feminina com seu livro
Mulheres que Correm com os Lobos

Estés fala da necessidade de as mulheres se reconectarem com sua essência instintiva, a mulher selvagem, que é a parte de sua psique livre das restrições culturais e sociais. Esse arquétipo representa a capacidade da mulher de ser criativa, autêntica e poderosa.

Estudo de Caso 3: A História de Laura (Nome fictício)

Laura, de 42 anos, esteve imersa em um relacionamento abusivo por anos, com um marido controlador que desvalorizava seus talentos e habilidades. 

Durante a terapia, Laura começou a reconhecer sua mulher selvagem através das metáforas e histórias contidas no trabalho de Estés. 

Esse processo a ajudou a recuperar a autoestima e a autoconfiança, essenciais para interromper o ciclo abusivo e começar a buscar uma vida mais alinhada com suas próprias necessidades.

Orientação psicológica:

O resgate da mulher selvagem é uma prática terapêutica que envolve a expressão plena da identidade feminina. Por meio de rituais de expressão criativa como a arte, a dança e a escrita, as mulheres podem resgatar esse aspecto primal de sua psique e curar feridas antigas. 

Além disso, é necessário que a mulher se permita viver de acordo com suas próprias regras e desejos, rompendo com as limitações impostas pela sociedade.


5. Daseinanalyse: Heidegger e a Questão do Ser

A abordagem de Martin Heidegger sobre a existência humana, conhecida como Daseinanalyse (análise do ser), oferece uma perspectiva filosófica enriquecedora para entender as neuroses femininas. 

Heidegger enfatiza que a angústia é uma experiência fundamental do ser humano, causada pela percepção de nossa finitude e pela busca por um sentido de vida. 

As mulheres, frequentemente sobrecarregadas pelos papéis impostos a elas, podem se sentir desconectadas de sua verdadeira essência, vivendo de maneira inautêntica.

Orientação psicológica:

A psicoterapia existencial, influenciada por Heidegger, propõe que a mulher reconheça sua finitude e a necessidade de viver de forma autêntica, sem se deixar definir pelos papéis sociais. 

A busca pelo ser-no-mundo autêntico envolve uma reflexão profunda sobre as próprias escolhas e o reconhecimento de que a mulher não é definida apenas pelos papéis que desempenha, mas por seu próprio ser. 

Terapias existenciais ajudam a mulher a explorar essas questões, promovendo o autoconhecimento e a aceitação da finitude.


6. Conclusão

A neurose feminina, enquanto reflexo das pressões externas e internas impostas pelas estruturas sociais, exige um olhar atento às diversas camadas psíquicas que a compõem. 

Freud, Jung, Estés e Heidegger oferecem ferramentas poderosas para a compreensão e a cura das mulheres que vivem sobrecarregadas por múltiplos papéis e expectativas.

Para que a cura seja possível, é essencial que as mulheres possam reconhecer as tensões internas, integrar suas sombras e recuperar sua essência autêntica. 

Como demonstrado nos estudos de caso, o processo terapêutico envolve explorar as repressões emocionais, resgatar o poder pessoal e viver de forma autêntica, com maior consciência de suas escolhas e do sentido de suas vidas.

Passos para a cura: 

  1. Exploração do inconsciente: A psicanálise oferece ferramentas para que a mulher reconheça suas repressões e conflitos internos.

  2. Integração da sombra: A terapia junguiana sugere a reconciliação com os aspectos reprimidos da psique para alcançar a individuação.

  3. Resgate da essência instintiva: O trabalho com a mulher selvagem, como proposto por Estés, pode ajudar a mulher a recuperar sua autenticidade e poder pessoal.

  4. Reflexão existencial: A análise existencial de Heidegger ajuda a mulher a viver de maneira autêntica, aceitando sua finitude e buscando significado em suas escolhas. Faça Psicoterapia.





  * Christianne Sturzeneker é mestra em filosofia existencial, psicóloga e psicoterapeuta especializada em Esquemas de Personalidade, com formação em psicoterapia junguiana, Daseinanalyse (análise existencial de Heidegger) e Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). Sua abordagem integrativa busca promover o autoconhecimento e a cura emocional, explorando tanto os aspectos inconscientes da psique quanto a reflexão sobre autenticidade e sentido de vida.


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Notas:

  1. Para Freud, a repressão de sentimentos e desejos no inconsciente é a principal causa das neuroses, sendo fundamental que o paciente explore e tome consciência desses conteúdos reprimidos.

  2. O conceito de sombra em Jung se refere aos aspectos da psique que uma pessoa não aceita ou reconhece como parte de si mesma. A integração da sombra é um processo de reconciliação com essas partes.

  3. Clarissa Pinkola Estés, em sua obra, utiliza a metáfora da mulher selvagem para descrever a parte instintiva e poderosa da psique feminina, que precisa ser resgatada para a cura.

  4. A análise existencial de Heidegger foca na busca por autenticidade e no reconhecimento da finitude do ser humano, abordando a angústia e o vazio existencial.


Referências

  • FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Companhia das Letras, 2011.

  • JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Palas Athena, 2007.

  • PINKOLA ESTÉS, Clarissa. Mulheres que Correm com os Lobos. Rocco, 1999.

  • HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vozes, 2006.

  • LENGLET, Michelle. A Psicologia das Mulheres. Cultrix, 2008.




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