Crônica de Mary - Os caminhos da alienação de um mundo virtual

Quando a Mary percebeu-se só, ela só podia contar com sua realidade virtual.

Em pleno século XXI, Mary, 27 anos, solteira, engenheira de comunicação, tinha a falsa sensação de que nada mais nos separa pelas redes de conexão cibernética. 


Alienada, ela caminhava paradoxalmente a passos rápidos ao encontro de uma solidão,  antes nunca experimentada. Esses passos, muitas vezes trôpegos, assinalam um mal que que se estende a uma possível aniquilação do ser - a vida virtual. 


Mary estava sozinha em casa. Tivera um dia exaustivo. Percebeu que muitas coisas estavam fora do lugar. Precisava se organizar para a  próxima semana. Sua agenda estava repleta de obrigações e compromissos. De repente, percebera que não conferira suas mensagens no smartfone. 

Não era surpresa para Mary: 713 mensagens acumuladas inundando o celular com mil e uma opções, desde vendas à pornografia. São amigos, colegas de trabalhos, familiares, dezenas (se não centenas) de grupos. Muita bobagem - afinal. Sério mesmo ficava a possibilidade de umo tète-a-tète, há tempos esquecido. 

Seus dedos e olhos deslizam na tela. Isso porque ela ainda não abrira o e-mail abarrotado de mensagens (a maioria anúncios e propagandas). Os APP’s não ficavam pra trás: comidas, placares de jogos, notícias abarrotam os espaços megas-gigas-teras, quando não as nuvens. Imagens, memes, piadas, Bulliyng, etc.. etc.. etc... 

Tudo vinha ao encontro à Mary enquanto ela ainda esta sentada no sofá sem sequer perceber que cinco horas se passaram e o crepúsculo fincou.  Ao cair da noite a ficha caiu: apesar das “companhias”, estava tão só!

Essas companhias virtuais não eram realidade há 50 anos atrás, quando Mary ainda não havia nascido. Como homem moderno conectado continua sentido solidão? Essa questão tornara-se seu dilema.

Mary já não fazia distinção entre o real e o virtual. Inclusive no âmbito da amizade.  Não sabia mais diferenciar a emoção entre um gif no Insta e um abraço corporal. Desde cedo, Mary tivera um lugar nesse frio sazonal da solidão.

Tal qual Mary, milhões de jovens e adultos, nascidos na era da tecnologia virtual, não conhecem a sensação de ler um jornal, ir ao cinema, sentar banco de uma praça, comprar e ouvir discos. Quando não é a internet e o celular  o enclausurador do ser a TV o modela. 

Mary estava habituada a famosa era digital-interconectada. Fez mais amigos virtuais que corporais. Tantos virtuais que nem em 150 anos de vida conseguiria construir em carne tal proporção. Mas do que lhe valia tudo isso ante a solidão que lhe rasgava a alma. Talvez ela jamais distinguira o conceito de amizade em sentido mais amplo. 

Se amigos demandam história, tempo, contato, afetos, ou seja, uma relação corporal, ainda que na forma de um olhar ou sorriso, ela se sentia mais perdida ainda. Para Mary, um Face Tyme facilitaria esse processo. Contudo, ele jamais perpassaria o calor de um abraço.

Mary, em seu dilema, percebera (mesmo tardiamente), as rupturas de várias gerações. Como mulher curiosa e inteligente, sabia que algumas mudanças geracionais eram passíveis de verificação. Havia um lugar de isolamento. 

Um abismo em sua alma ocupado por figuras estranhas e emoji's. Mas como seria esse lugar sem toda esta ocupação? Esse receio, a mantinha cativa na rede. Ela temia o novo, o chato, a recusa. Entre uma tecla e uma tela havia poder e liberdade.

Ela podia curtir, des-curtir, interromper, bloquear, mascarar e criar avatares mil, quando insegura ou insatisfeita. Nesse mundo narcísico, Mary podia assumir fantasias completas, inclusive se ocultar da verdadeira face. 

Para Mary, a internet trouxe a ilusão de um pseudo poder e a droga da felicidade ininterrupta. Para ela, doses maiores de conexão cotidiana aliviavam a dor da realidade de não saber mais socializar-se com o mundo real. Selfies sem fim, revelavam constantes Coringas sem o rasgo na face.

Naquela calada noite,  Mary tivera uma crise. As máscaras estavam caindo. A maquiagem não sustentava a dor que assolava seu peito fadigado. Porque a vontade de morrer persistia?

Mary, tal qual milhares de jovens de sua geração, perceberam o tiro sair pela culatra: a internet criada como projeto de integração humana, aproximadora de povos, disseminadora da pluralidade humana, estava criando uma espécie de vírus de “autismo digital”, “isolamento social dentro de redes virtuais”, uma depressão proliferada em barra de rolagens.

Com esses pensamentos, deitada em sua banheira, Mary deixou a taça de vinho cair no chão. Com lágrimas, o desejo de ver passar aquela dor se confundia com uma imagem de sangue jorrando na louça branca. Ela perdera a liberdade do ser, sua liberdade social, sua autonomia individual ao se igualar e se fundir outras pessoas para se ver livre do vazio da solidão - isso - conectada ao mundo virtual.
                                           
Existem muitos caminhos possíveis para explicar tanta solidão e tentativas de fuga da angústia contemporânea. Incluindo a de Mary. Vale ressaltar que solidão não é sinônimo de estar sozinho e que companhia não amalga com estar acompanhado.

 A solidão pode ter carater positivo como nos levar a uma maior compreensão de si, a pensar, ler, refletir. Afinal, buscar certo recolhimento proporciona o encontro ao seu próprio Daimon, já dizia Sócrates. 

A solidão pode ser boa e produtiva, tranquilizadora e até essencial.  Pode ser um exercício contemplativo muito bom e um ponto de crescimento. Até porque, viver com os outros negociar constantemente as multi-singularidades que produzem atritos. 

Ter companhia requer habilidade para compreender essas diferenças e estabelecer diálogos construtivos. O convívio também pode ser rico pela diferença e atrito em si. 

Mas em relação às redes sociais, não é possível obter o mesmo resultado, pois estes não oferecem o mesmo isolamento necessário para o crescimento produtivo, nem mesmo uma intimidade densa ou mesmo, conflituosa da relação HUMANA.

A internet é diferente do conhecimento humano. No que condiz ao exercício da relação não concede paz e isolamento intelectual suficiente para a compreensão existente de um deserto subjetividade, nem acesso ao simbólico do horizonte do ser. 

O imediatismo, o pronto,  o mastigado, são o canto da sereia para a ilusão do absurdo ineficaz de sobreviver ao movimento perpétuo das ondas na rocha. As redes sociais instigam a uma falta constante, produz um desejo insatisfeito, mas jamais ponderação isolada e produtiva que facilitaria a paz.

Não sendo favorável a paz interior em função de sua dinâmica interna, a internet põe o sujeito nesse lugar de passividade e dependência, a escuridão da força amortecedora do tédio, nega as luzes da iluminação do ser, quanto mais  a alteridade da convivência. 

Muitos se tornam carrascos virtuais, crendo serem capazes ofuscar um crescimento e/ou aperfeiçoamento do ser, limitando a uma rede de desvirtuação, ações próprias e incentivadoras da violência e destruição.
Mary and Self
O isolamento nem sempre é bom. O extremo são os chamados hikikomori, como já descrevi em outro artigo: jovens japoneses que ficam trancados no quarto com a internet ligada sempre e sem outros contatos sociais. Se alimentam, vivem ou sobrevivem neste ambiente. Mary, agia assim. Estava em contato com o mundo todo, mas isolada de um outro maior, ou seja,  O outro que está no Eu. 

“Uma boa solidão é oposta ao sentimento de não precisar do outro”. 
                                                                             (KARNAL, 2017)

Quando percebemos que precisamos do outro, não de forma absoluta, nossa solidão é transformada em potência criativa, sem carga de humilhação da solidão patológica.

Empenhar-se, despir-se de palavras vazias e banais, das máscaras embutidas e incorporadas, e do modal viciante, é uma boa dica para se conquistar o lugar da liberdade do ser e compreender a diferença entre as oportunidades construtivas da solidão e das relações.

Mary conseguiu perceber a tempo esta diferença. Com um salto de alteridade, pegou a toalha, se enxugou, vestiu um jeans e desafiou a noite fria e chuvosa. Procurou seus amigos no Pub e não hesitou a abraçar um a um. Perdeu-se em seus braços, como ensina a psicanálise.

No bombear daquela emoção, seu rosto, seu corpo, envolvidos no calor do outro, renovou-se para além de uma self: para a história do ser. 

Mary percebeu que não adiantava estar totalmente conectada afundando na solidão. Afastar-se de todos era assumir hikikomori¹.  O que ela realmente queria não era a escuridão e o frio. Claro, sua atitude requereu energia, disposição para sair de um túmulo comum e escrever uma pagina autêntica no corpo vivo e exercitar o lado criativo e libertador: precisamos de muitas pessoas, precisamos amar ao outro e nos amarmos, e nesse mergulho de alteridade nos deliciamos com o viver autêntico.

E assim, Mary descobriu a faceta libertadora da solidão tornada amiga e apta para voltar ao convívio dos outros, porque já convive consigo.


“O salto quântico para a alegria, é o horizonte do ser”. 


Da amiga de sempre, Chris Viana.


Chris Viana
Copyright©2005-2020



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¹- Chris Viana.  – Isolamento social como marca de um possível não-ser? Publicado em: A empreendedora. Disponível em: https://aempreendedora.com.br/hikikomori-isolamento-social-como-marca-de-um-possivel-nao-ser/.
                               








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