Heidegger nas Margens de Rosa: Uma Travessia Ontopoética

Impressões sobre “Ripuária”, de João Guimarães Rosa
Tutaméia: Terceiras Estórias (1967)
Por Christianne Sturzeneker 

🌾 Prólogo

“Ripuária”, uma das mais líricas narrativas de Tutaméia – Terceiras Estórias, é um conto-poema onde o tempo, a memória e o ser fluem como um riacho silencioso.

📖 Trecho do conto "Ripuária":

“Quem há que não se encante com o rumor de um riacho, mesmo de longe?
(...)
Nada mais me move, mas tudo em mim continua indo.
Tudo isso é só o que escuto.”

Gerada po AI

🌊 Metáfora da Água e o Fluxo da Existência

Desde a primeira linha, o riacho evoca mais do que um cenário: é tempo, infância, consciência. A frase “o tempo é água” sintetiza a essência do conto — uma temporalidade líquida, não linear, que mistura vivência e esquecimento.

O narrador é um “eu lírico existencial”, sem nome ou identidade fixa. Caminha no raso do riacho como quem volta à infância, como quem já não está onde estava: “Estive na margem, mas já era dentro.”

É um rito de passagem. O corpo está ali, mas a alma se dissolve no fluxo contínuo.

🌱 Infância, Morte e Permanência

“Me pareceu que eu era menino.”

A infância funciona como símbolo da autenticidade primordial — estado de ser antes da fragmentação da consciência adulta. Ao caminhar nas águas, o narrador entra num limiar: entre o ser e o deixar de ser.

A frase final — “Nada mais me move, mas tudo em mim continua indo” — expressa uma aceitação serena da finitude.

🌀 O Tempo como Fluxo e Dissolução -  Ripuária e o Existencialismo: Heidegger, Sartre, Kierkegaard & Cia

A percepção de tempo em Ripuária ecoa a filosofia de Martin Heidegger, onde o ser é sempre um ser-no-tempo. O narrador funde-se ao ambiente, num processo de perda do ego:

“A vida é efêmera, fluida e impossível de ser contida.”

Ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode)

A travessia pelo riacho simboliza a jornada para a morte, não como tragédia, mas como revelação:

“O morrer não é um simples evento que ocorre com o Dasein, mas um modo de ser do próprio Dasein.” (Heidegger)

Em Rosa, a morte não é negação — é escuta, passagem, dissolução no todo. É uma aceitação quase mística, próxima do pensamento de Simone Weil ou Gabriel Marcel.

🔇 O Silêncio como Expressão

Ao fim do conto, o silêncio é o que resta. A dissolução do sujeito é também um desvelar do ser, o “fundo do fundo”, como Rosa escreve. Heidegger chama isso de escuta do Nada: "O nada nos chama e esse chamado é silencioso". (Heidegger)

👶 A Infância como Essência Perdida

“Me pareceu que eu era menino.”

Esse retorno à infância é mais que nostalgia: é símbolo da autenticidade heideggeriana, o rompimento com a inautenticidade do cotidiano. Há ecos nietzschianos também — a criança como símbolo de liberdade, inocência trágica e potência de recomeço.


📚 Heidegger e “Ripuária”: Um Diálogo Profundo -  Travessia Ontológica

A travessia do riacho é metáfora da passagem para outra forma de ser. O narrador, ao atravessar a água, abandona o mundo ordinário. É Dasein se encarando no espelho do tempo.

                                     “O tempo é água.” (Rosa)

Não é mais cronologia. É existência fluida, íntima, onde o ser escorre entre os dedos.

🌌 A Linguagem como Morada do Ser

Ripuária é pura linguagem. Não há ação — há ritmo, imagens, intuição. Rosa faz da linguagem uma revelação, como diria Heidegger: "Só onde há linguagem Há mundo;  O ser fala através da linguagem.” (Heidegger)

Rosa torce a sintaxe e cria palavras não por vaidade literária, mas porque tenta dizer o indizível. Ali, a linguagem deixa de ser meio — torna-se morada do ser.


Conclusão: Heidegger em Tutaméia — Rosa na margem do ser

O conto Ripuária, ao diluir a fronteira entre prosa e poesia, revela-se como um verdadeiro experimento ontológico. Não é uma narrativa que se fecha em enredo, mas uma travessia meditativa, onde o ser se desvela na lentidão da linguagem e no murmúrio das águas. Guimarães Rosa, nesse pequeno-grande conto, nos propõe menos uma história e mais uma escuta — do tempo, da morte, da infância, e sobretudo, do silêncio.

A presença de Heidegger não se dá como influência direta ou intencional, mas como uma ressonância profunda entre dois pensadores do ser: um pela via da filosofia, outro pela via da linguagem poética. Ambos caminham nas margens do indizível, perguntando pelo mistério do existir. Se Heidegger diz que “a linguagem é a morada do ser”, Rosa constrói essa morada com barro, vento e palavra inventada.

Em Ripuária, o ser não se explica — se insinua, escorre, se dissolve.

A travessia do narrador é a própria jornada do Dasein: entre o nascer e o morrer, entre o lembrar e o esquecer, entre o estar e o já não ser. A água é o tempo, a infância é a autenticidade, o silêncio é a resposta que não se formula. Não há drama, apenas contemplação. A morte não é fim, mas forma final de permanência.

Ler Ripuária à luz de Heidegger é compreender que Guimarães Rosa não apenas conta — ele pensa com a literatura. Seu texto vira pensamento encarnado, ritmo que medita. Rosa propõe uma estética existencial radicalmente brasileira, onde o mato, a pedra, a florzinha e o riacho ganham espessura ontológica.

Ripuária é conto de margem, sim — mas de uma margem onde o leitor, como o personagem, já está dentro. Já atravessou. Já escuta, mesmo sem saber.

E, como Rosa escreveu, “tudo em mim continua indo”.

A literatura, quando verdadeira, nunca para. Ela ecoa.


📖 Referências

GUIMARÃES ROSA, João. Tutaméia: Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
— Reedição: Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes, 1998.
— Conceitos: Dasein, Ser-para-a-morte, autenticidade, temporalidade.

HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Lisboa: Fundamentos, 2002.
— Citações: “Só onde há linguagem há mundo”; “O ser fala através da linguagem.”

HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? São Paulo: Loyola, 2007.
— Citação: “O nada nos chama, e esse chamado é silencioso.”

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. São Paulo: Vozes, 2010.
— Conceito citado: ser-no-tempo; consciência do ser como projeto inacabado.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
— Temática: absurdo da existência, finitude e busca de sentido.

KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
— Conceitos: subjetividade, relação com o absoluto, interioridade existencial.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
— Tema citado: crítica à moral, inocência trágica da criança como símbolo de autenticidade e liberdade.

WEIL, Simone. A Gravidade e a Graça. São Paulo: Vozes, 2002.
— Abordagem mística do sofrimento e da presença silenciosa do divino.

MARCEL, Gabriel. O Ser e o Ter. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
— Conceito existencial cristão: transcendência, esperança e presença.

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